20 de abril de 2024

ETIÓPIA SOB A AMEAÇA DA FOME


A Etiópia volta a estar sob a ameaça da fome devido à guerra, ao roubo de ajudas humanitárias e, sobretudo, à seca.

 

Quatro décadas depois de o país ter sido palco de uma enorme carestia que matou mais de um milhão de pessoas pela fome especialmente nas zonas – hoje Estados regionais – do Tigré e Amara, o espectro da morte volta a pairar sobre o país mais populoso do Corno de África.

Os factores são sobretudo três: a guerra, os desvios de ajuda humanitária e o fenómeno climático El Niño, que afecta as chuvas, fundamentais para a agricultura e pastorícia.

 

Guerra

Quando, em 2018 assumiu o poder, o primeiro-ministro Abiy Ahmed prometeu eleições antecipadas. Contudo, devido à pandemia de covid-19, o acto eleitoral foi adiado para data a anunciar.

Todavia, a Frente de Libertação do Povo do Tigré (TPLF, na sigla em inglês), o partido que governa aquele Estado regional, decidiu organizar eleições locais à revelia do Governo Federal. Os Tigrínios viram-se envolvido numa guerra violenta com os exércitos etíope e eritreu – que tinha contas antigas a saldar com a TPLF – de Novembro de 2020 a Novembro de 2022 que, segundo algumas estimativas, matou 600 mil civis. 

Durante a guerra – que alastrou aos vizinhos Estados regionais Amara e Afar –, o Governo montou um cerco ao Tigré bloqueando o envio de assistência humanitária e cortando a electricidade, as telecomunicações e o sistema bancário no Estado rebelde. A guerra – com a destruição das infra-estruturas e da agricultura – deixou mais de cinco milhões de pessoas sob a ameaça da fome.

O conflito no Tigré foi resolvido com um acordo de paz mediado pela África do Sul, mas tropas da Eritreia ainda ocupam partes do Estado.

Entretanto, em Abril de 2023 outro conflito explodiu no Estado regional Amara. As milícias amaras ajudaram o exército no combate aos Tigrínios, mas, depois, o primeiro-ministro decidiu anexar todas as forças regionais no exército federal. Os Amaras – entalados entre a Oromia e o Tigré – não confiam no exército federal para os defender dos vizinhos mais poderosos e rebelaram-se contra o Governo.

Há outro conflito que grassa há quase seis anos no Estado regional da Oromia, o maior em dimensão e população. Em 2018, uma facção da Frente de Libertação Oromo (OLF na sigla em inglês) não apoiou o acordo de paz com o primeiro-ministro Abiy – que é oromo – e criou o OLA (Exército de Libertação Oromo), que actua sobretudo nos territórios de Wollega, Arsi e Guji. Delegações do Governo e do OLA já se reuniram por duas vezes na Tanzânia para discutir a paz, mas as negociações, mediadas pela IGAD, a Autoridade Intergovernamental para o Desenvolvimento (da África Oriental), Noruega e Quénia, foram até agora infrutíferas.

 

Desvio de ajudas em grande escala

Com a cessação de hostilidades no Tigré e o levantamento do bloqueio imposto por Adis-Abeba à região, as organizações humanitárias puderam finalmente assistir as populações famintas e doentes do Estado.

Mas um novo problema apareceu: uma parte substancial das ajudas humanitárias estavam a ser roubadas por militares e funcionários do Governo. Perante o facto e na impossibilidade de o Governo controlar o esquema de desvio de cereais em grande escala, os Estados Unidos da América e a União Europeia suspenderam a prestação de ajuda humanitária crítica ao Estado regional do Tigré em Março de 2023 e, três meses depois, a todo o país. 

A suspensão voltou a pôr a sobrevivência das populações, já de si vulneráveis devido à guerra, em apuros acrescidos. Entretanto, em Dezembro passado a suspensão foi levantada depois de os doadores terem implementado um número de medidas anti-roubo no circuito de distribuição de comida e outros bens urgentes, incluindo o uso de localizadores GPS nos camiões de transporte. 

 

Fome

O fenómeno El Niño é um evento cíclico provocado pelo aquecimento das águas do oceano Pacífico Tropical que afecta o clima global, altera as correntes dos ventos, provoca ondas de calor e secas nalgumas zonas e inundações e tempestades noutras.

El Niño afectou o regime das chuvas sobretudo no Norte do país, que o ano passado foram muito escassas. Devido à seca, as colheitas foram fracas e os pastos secaram no Norte, Leste, Sul e Sudoeste do país. No Norte, uma praga de gafanhotos piorou a situação.

Para responder ao desastre humano que se desenha, o Governo etíope e o coordenador humanitário da ONU na Etiópia lançaram um apelo urgente para financiar a resposta à insegurança alimentar nas terras altas do Norte do país, afirmando que milhões de vidas e de cabeças de gado se encontram ameaçadas pelos efeitos do El Niño. O apelo descreve a «segurança alimentar alarmante e malnutrição crescente» na zona.

Em 2024, segundo os números do Governo, 15,8 milhões de etíopes vão passar fome e por isso necessitam de ajuda urgente; 7,2 milhões de pessoas sobrevivem sob níveis elevados de insegurança alimentar aguda.

Getachew Reda, presidente interino do Governo Regional do Tigré, afirmou que 91 por cento da população do seu Estado (estimada em 5,5 milhões de habitantes) se encontra «exposta ao risco de fome e morte». 

No Estado amara, e segundo as autoridades locais, a seca deixou 1,8 milhões de pessoas a precisar de assistência alimentar urgente e matou 140 mil cabeças de gado.

Chris Nikoi, director interino do PAM – o Programa Alimentar Mundial das Nações Unidas – na Etiópia, afirmou que «está extremamente preocupado com a deterioração da segurança alimentar no Norte da Etiópia, onde muitas pessoas já enfrentam uma fome grave». O Programa já arrolou quase 6,2 milhões de pessoas mais vulneráveis nos Estados regionais de Afar, Tigré, Amara e Somália.

 

Politização da fome

Face ao alarme crescente, o Instituto da Provedoria Federal da Etiópia decidiu enviar observadores ao Norte do país para investigarem a situação referente à seca e à fome.

O relatório do levantamento foi tornado público no fim de Janeiro e afirma que quase 400 pessoas morreram de fome na última metade do ano passado: 351 no Tigré e 44 no Amara. As autoridades do Tigré indicam que o número de mortos é 860.

O relatório critica ainda a falta de coordenação entre o Governo Federal e os governos regionais na resposta à crise humana no Norte do país.

Entretanto, em Fevereiro passado o primeiro-ministro Abiy desautorizou o relatório da Provedoria. Num discurso no Parlamento Federal, admitiu que a seca afecta sobretudo as regiões do Tigré, Amara e Oromia e afirmou que «com base nas informações disponíveis, até à data não foram registadas mortes atribuídas à fome», mas à cólera, malária e malnutrição. «Devemos abster-nos de politizar esta questão. As tentativas de explorar a seca para obter ganhos políticos são injustificadas», alertou. Este tem sido o mantra do Governo.

O espectro da fome que paira sobre o país – em tudo semelhante à crise de 1983-1985, que afectou mais de sete milhões de pessoas (cerca de dez por cento da população) e matou mais de um milhão de etíopes –, põe em causa a imagem que o governo de Abiy construiu de um país auto-suficiente na produção de cereais para consumo e exportação. Por outro lado, a História lembra que o imperador Haile Selassie foi destronado por em 1973 e 1974 ter tentado ocultar uma situação de fome em tudo semelhante à crise actual. 

10 de abril de 2024

QUEBRAR O JEJUM

 


Não nos oferecem nem café nem chá quando chegamos às suas casas. É Ramadão. Esperamos pelo pôr-do-sol. Conversamos até que chega o ansiando momento do iftar.

No deserto de Judá, entre os beduínos, como noutras aldeia e comunidades muçulmanas, o iftar é a refeição que quebra o jejum do dia durante o Ramadão.

Fazem jejum a partir dos sete anos. Desde as 04h00 da manhã não comem nada, nem água sequer. Mohamed e a irmã perderam peso de maneira considerável. Têm mais de sete anos e, por isso, jejuaram durante o mês do Ramadão.

Com a chegada do entardecer, os beduínos reúnem-se por grupos de famílias ou tribos para quebrar o jejum. 

Em Jerusalém, um disparo como o de um canhão anuncia o início do iftar. Noutros lugares, é anunciado a partir das mesquitas.

As aldeias beduínas que não têm mesquita escutam-no no telemóvel ou através da televisão.

No deserto da Judeia, os beduínos o que primeiro comem são tâmaras ou bebem um trago de alguma bebida fresca.

A comida é gostosa e abundante. Podem comer a intervalos até às 04h00, hora a que o jejum começa de novo. No fim da refeição servem doces árabes ou pãezinhos com mel.

«Apesar de comermos, o alimento tem sabor amargo pelo que se está a passar em Gaza», lamentou um chefe beduíno.

Este Ramadão tem sido muito doloroso. 

«Jejuamos a pensar na gente de Gaza, e comemos com dor por tantos que não têm que comer», dizem-nos. «Este Ramadão foi muito triste».

Hoje, 9 de abril, é o último dia do Ramadão. Amanhã será a festa do Eid al Fitr, o fim do mês de jejum.

Estivemos com uma família até que a noite chegou. Comemos com eles. Pediram para dormirmos lá. Pensando no que implica a preparação da festa do Eid al Fitr, desta vez não pernoitamos com eles. 

Eid al Fitr. Os homens levantam-se cedo para irem rezar às mesquitas próximas. Alguns beduínos vão a Alazareya, outros a Anata.

Depois vão visitar as suas irmãs. É tradição que lhes levem dinheiro, doces e presentes para os sobrinhos. Este ano será muito triste: muitos perderam o trabalho desde que a guerra começou.

No segundo dia da Eid al Fitr, as mulheres visitam os seus pais. As casas paterno-maternas estão cheias. As famílias são numerosas.

Eid al Fitr é o tempo para o encontro, convívio, partilha na esperança que que a tão desejada paz chegue.

Ir Cecília Sierra,

Missionária Comboniana a trabalhar com os beduínos no Deserto da Judeia, Terra Santa

8 de abril de 2024

A CHUVA VOLTOU



Deixei Qillenso no dia 25 de março para participar na Assembleia Provincial e no Conselho Provincial que se lhe seguiu em Hawassa, a cidade onde se encontra a sé-catedral da diocese com o mesmo nome. O nome que vem do lago que a embeleza.

A natureza estava pintada de tons castanho: a erva secara há bastante tempo e o gado contentava-se em rapar o palhuço temperado com pó e aguentar as carraças que se multiplicam na poeira.

Muitas árvores estavam nuas devido à canícula serrana que, este ano, começara no fim de novembro, um mês mais tarde garças ao fenómeno meteorológico chamado El niño.

A estação seca, a bonna, é a altura do ano que mais gosto de Qillenso pela temperatura amena, pela luminosidade, pela abundância de comida para as pessoas.

Regressei uma dúzia de dias depois e o castanho tinha esverdeado: a ganna gurracha, a estação escura das chuvas como os Gujis lhe chamam, tinha iniciado.

A chuva apareceu pela calada convocada pelos dois piares agudos e um grave que formam cada chilreio da ave chama-a-chuva. O vento empurrou as nuvens enquanto que os trovões as abanaram para finalmente abençoarem a terra ressequida com a água que carregavam no seio.

O cheiro da terra seca a receber as primeiras chuvas depois de quatro meses de estiagem é indescritível: é abafado, cheiro da vida que se renova, da natureza que acorda depois da pausa estival que é tempo das colheitas e para retemperar forças.

O gado volta a poder ruminar, tranquilo, a erva viçosa que o alimenta. Já não precisa de correr mundos e fundos para uma refeição escassa. Agora há pasto por todo o lado!

As árvores, queimadas pelo calor da montanha, voltam a sentir a seiva a circular nos seus troncos e os gomos despontam em novas folhas viçosas e em flores.

Os pássaros cantam, felizes, a mudança do tempo que lhes traz mais alimento. As abelhas colhem o néctar que as alimentará em dias menos fartos. E as borboletas dançam de flor em flor.

As pessoas voltam aos campos para os lavrar com o arado rudimentar puxado por dois bois e semear o milho para aproveitar a irrigação que vem do céu, a única rega disponível. Se as chuvas falham, os ratos comem as sementes e a semeadura lá se vai...

A estação da chuva traz apagões frequentes, que o sistema solar que instalamos com a ajuda dos Combonianos de Portugal ajuda a dirimir iluminando a nossa noite.

É também a época da humidade, do nevoeiro, das veredas enlameadas. De mais um cobertor na cama.

É a estação em que trocamos o conforto dos todo-o-terreno pelas galochas para visitar as capelas construídas na floresta. 

É tempo de arriscar a viagem a Massina, a capela mais ativa na zona de Adola e mais mal servida de picada.

É oportunidade de fazermos causa comum com quem nos cruzamos e trocamos saudações de paz nas idas e vindas das capelas, de brincarmos com a pequenada que guarda o gado.

Sem chuva não há vida. Sem chuva não há comida. Quando a humidade é de mais – lá para julho – a lareira da sala mantém a casa quente e confortável. E dias mais secos hão de vir!

2 de abril de 2024

FOI DEUS QUE TE ENVIOU!


Não têm hora nem lugar. É quando quiseres e onde quiseres. Basta um sinal com a mão e tem-lo ali ao teu lado: assim é o tuque-tuque hoje, aqui, em Helwan e em muitos outros lugares do Egipto. Assim era também o tuque-tuque no Sudão, há alguns anos atrás. Foi assim naquele domingo de Páscoa em Nyala, onde fui missionário durante uma dúzia de anos.

O tuque-tuque parou ao meu lado.

– Dar el Salam? – perguntei.

– Sim, entra se faz favor. Egípcio ou Sírio?

– Nem um nem outro. Desculpa, desta vez não acertaste. Sou europeu. O meu país é Portugal! – sorri.

O condutor do tuque-tuque ficou confundido, pois estava habituado a que os poucos brancos que se viam no Sudão serem, geralmente, de origem síria ou egípcia.

– Não imaginava que me aparecesse um cliente conterrâneo do Cristiano Ronaldo, o meu jogador favorito! – respondeu. – O que é que te trouxe aqui a Nyala, a este remoto canto do Darfur, no Oeste do Sudão? Aposto que trabalhas para uma das muitas organizações da ONU, não é verdade? – perguntou, intrigado e curioso.

– Também não acertaste! – respondi-lhe, em tom de brincalhão.

– Então, o que é que te trouxe aqui? – insistiu, já um tanto impaciente.

– Tu mesmo. Tu e toda a gente de Nyala, do Darfur e do Sudão inteiro! – respondi.

Fitou-me com ar confuso. Parecia que se tinha esquecido que ia a conduzir o tuque-tuque. Tive que lhe gritar:

– Tem cuidado! Agarra o guiador! Olha que a estrada não é só para nós!

O meu alarme deixou-o sem palavras. Reduziu a velocidade do triciclo e, de maneira a não deixar cair a conversa, articulou a pergunta:

– Eu e os meus compatriotas sudaneses trouxemos-te aqui? Será que me conheces de algum lado? Sabes quem eu sou?

Eu, com um sorriso calmo e encorajador, reafirmei:

– Sim, tu e todos os sudaneses.

O lugar para onde nos dirigimos é de fraca nomeada.

– Conheces Dar el Salam? – perguntei.

– Sim, mas não vou lá frequentemente! – respondeu. E continuou:

– É uma aldeia nova, de refugiados do Sudão do Sul que escaparam da guerra e ficaram por aqui. É um pedaço de deserto muito solitário e inóspito, onde até há bem pouco tempo não havia quase ninguém. Dizem que as serpentes lá são das mais perigosas. E o que é ainda pior, é o lugar de esconderijo dos famosos Janjauides, os grupos de rebeldes armados que matam sem dó nem piedade. Muitos dos jovens dessa nova aldeia procuram trabalho em Nyala, mas têm pouca sorte! – respondeu.

Estávamos a chegar à entrada do nosso destino: Dar el Salam, literalmente Casa da Paz.

Alguns catraios brincavam na estrada de terra batida, mas a cena não estorvou a paciência do condutor. À medida que o veículo se aproximava, ele captou as palavras gritadas pelos pequenos.

Olhou para mim, desconfiado e curioso, como a querer perguntar-me qualquer coisa. Apurou o ouvido e certificou-se. Não havia mesmo dúvida alguma. Tinha percebido clara e distintamente.

Abuna ja, o nosso pai chegou! – os miúdos gritavam.

Acenei-lhe com a cabeça que sim, que também eu próprio tinha ouvido.

Perguntou-me, muito admirado:

– É mesmo verdade que és o pai deles?

Aproveitei a ocasião de lhe explicar o porquê de os garotos me terem chamado abuna. Foi uma espécie de mini-catequese que escutou com interesse.

– Sim, sou abuna, pai, porque os cristãos chamam assim os sacerdotes católicos, os padres, em árabe. Aqui, no acampamento de Dar el Salam, muitos dos refugiados são católicos. Hoje é um dia muito especial: é a Páscoa, a nossa grande festa. Eu sou o abuna, o sacerdote. Venho celebrar com eles a Páscoa da Ressurreição.

– Agora compreendo o que te trouxe ao Sudão! – disse, enquanto aplicava o travão de mão do veículo. E continuou: – Tu és um rajul el din.

Os muçulmanos, de facto, chamam rajul el din, homem da religião, às suas autoridades religiosas. Continuámos a conversar ainda por mais alguns minutos. De desconhecidos que éramos, agora parecíamos amigos de longa data.

Ele manifestou querer saber mais acerca da religião cristã.

– Irei ter contigo, um dia destes, à tua casa, à igreja! – disse, enquanto atendia a um dos catraios que metia conversa com ele e lhe perguntava como se chamava.

– O meu nome é Khalid! – respondeu amigavelmente, enquanto se dirigia para o triciclo.

Parecia não ter pressa de voltar ao trabalho. Insisti em meter-lhe na mão o dinheiro da viagem. Mas recusou, ao mesmo tempo que exclamou com satisfação:

– Abuna, esta viagem fica à minha conta.

E, antes de pôr o motor a trabalhar, acrescentou:

– Deixa-me dizer só mais uma coisa: o que te trouxe aqui não fomos nós os sudaneses, foi Deus. Foi Deus que te enviou.

Sim, a verdade foi clara e devidamente pronunciada: Foi Deus que me enviou. Esta declaração imprevista do Khalid, recordou-me a passagem do Evangelho em que Jesus Ressuscitado disse aos apóstolos «Ide por todo o mundo…»

Sim, era o Jesus da Páscoa.

O motor do tuque-tuque já batia de novo. Gemia, queixava-se, mas não havia forma de se mexer. Seria bruxedo? Sim, era um feitiço muito fácil de desvendar: os putos, traquinas, tinham invadido o pequeno veículo de tal maneira que não cabia nem mais uma agulha. Riam e gritavam numa algazarra nada fácil de acalmar. Até que um dos anciãos se aproximou e, usando a sua autoridade em língua dinca, pôs termo à questão.

– Olhem que o catequista já está na capela à vossa espera! – acrescentou.

Finalmente, o tuque-tuque pôde partir e, pouco a pouco, desapareceu na nuvem de pó levantada pela cáfila de camelos que acabara de passar.

Na santa Missa, a alegria não parou. Não eram só os pequenos, mas também os jovens e adultos, homens e mulheres. Juntos, formavam a pequena-grande comunidade cristã que se tinha reunido na espaçosa palhota que se distinguia entre as outras habitações da aldeia de Dar el Salam. Naquele grandioso dia, a cruz de bambu que se vê de longe no topo da capela estava lindamente adornada com ramos verdes de nim e flores brancas de sabah el kheir.

Gassim, o catequista, estava orgulhoso da sua comunidade e da dezena de jovens catecúmenos que de aí a pouco ia receber o batismo. Ali, junto do altar, cantavam em coro com toda a comunidade:

Alegremo-nos e exultemos! É a Páscoa do Senhor. Aleluia, Aleluia, Cristo ressuscitou.

P. Feliz da Costa Martins

Missionário Comboniano no Egito

20 de março de 2024

ETIÓPIA: HARO WATO OFERECE PRIMEIRO SACERDOTE




A missão católica de Haro Wato, do Vicariato Apostólico de Hawassa, no Sul da Etiópia, ofereceu o seu primeiro sacerdote ao Instituto Comboniano.

O diácono Abebayehu Tefera Atara foi ordenado sacerdote a 16 de março de 2024.

Dom Seyoum Fransua, vigário apostólico de Hosanna, presidiu à Eucaristia e conferiu a ordenação em língua guji.

Uma grande multidão enfrentou o sol ardente e juntou-se no campo de futebol da missão ou à sombra das árvores adjacentes para testemunhar a primeira ordenação sacerdotal na paróquia.

A celebração durou mais de três horas.

Duas dezenas de sacerdotes do clero local, dos Missionários Combonianos e de outros institutos missionários participaram na celebração juntamente com algumas irmãs Missionárias Combonianas, das Servas da Igreja (congregação local de Hawassa) e das FMM.

O coro paroquial abrilhantou a celebração.

O diácono Abebayehu escolheu como Evangelho da sua ordenação a tríplice confissão de amor de Pedro (João 21, 15-19).

Durante a homilia, D. Seyoum elogiou o trabalho dos Combonianos nos últimos 29 anos em Haro Wato.

«A ordenação de Abebayehu é um dos primeiros frutos deste serviço missionário», disse.

Sublinhando o mandato missionário de Jesus, o bispo disse ao diácono a ser ordenado: «Vai por toda a parte, proclama a Boa Nova e celebra os sacramentos. O Senhor que te chamou está sempre contigo».

Ato Tefara e W/ Alemitu apresentaram o filho para a ordenação.

No final da celebração eucarística, o P. Asfaha Yohanes, superior provincial dos Missionários Combonianos na Etiópia, agradeceu a todos os presentes. 

Anunciou que o recém-ordenado vai a Moçambique em nome da paróquia de Haro Wato para anunciar o Evangelho.

«Um sacerdote é um servidor do Evangelho, através do poder de Deus. Rezem por ele», o P. Asfaha pediu.

A celebração terminou com uma refeição para todos os participantes.

O P. Abebayehu tem 36 anos de idade.

É o mais velho de nove irmãos: seis rapazes e três raparigas.

Fez o noviciado em Namugongo, no Uganda, e concluiu a formação teológica em Nairobi, no Quénia.

Exerceu o diaconado durante seis meses na sua paróquia de origem.

«Para mim, ser padre é mais do que cumprir os costumes e os deveres típicos da autoridade religiosa. É um caminho de desenvolvimento espiritual, de serviço altruísta e de ligação com a comunidade e com o Todo-Poderoso», disse o P. Abebayehu.

E acrescentou: «Ser padre é, na sua essência, uma vocação santa e complexa. Exige um forte sentido de responsabilidade social (que posso dizer que é um fardo para os religiosos se misturarem e tomarem iniciativa na vida da sociedade), um profundo empenhamento no desenvolvimento espiritual e um empenhamento sem reservas em viver os ensinamentos da compaixão e do amor».

O Ir. Desu Yisrashe, animador vocacional da província, preparou a ordenação, organizando alguns encontros com os jovens durante a semana precedente.

A missão de Haro Wato foi iniciada em 1995 pelos Missionários Combonianos como um ramo da missão de Qillenso, nas montanhas de Uraga, entre os povos Guji e Guedeo.

Abriram uma escola secundária do quinto ao oitavo ano.

As Irmãs Missionárias Combonianas chegaram dois anos mais tarde para abrir a clínica e o programa para mulheres. 

Na cidade vizinha de Sollamo, dirigem uma escola do jardim de infância até à oitava classe.

A missão de Haro Wato conta com 49 capelas agrupadas em oito zonas. 

O seu livro de batismo regista mais de 19 000 entradas.

9 de março de 2024

PIQUENIQUE NO DESERTO EM FLOR





«Que rica comida!», dissemos às professoras do jardim infantil.

As escolas pré-primárias estão no deserto, mas todos os anos organizamos um piquenique com as crianças que as frequentam. Às vezes as mães também participam.

Encontramo-nos numa das aldeias beduínas mais distantes, rodeada de paisagens formosas, penedos, areia e flores de todas as cores e fragrâncias.

«Sim, nós preparamos a comida, mas foram as meninas que fizeram as compras!», responderam.

No topo de uma colinita, sob os raios do sol, as professoras entenderam as toalhas sobre a areia e puseram a comida, bebida e guloseimas para as crianças. Um banquete requintado no meio do deserto.

Fitámo-las com surpresa e alegria.

As meninas a quem se referiram são as jovens que iniciaram o curso de bordados há apenas alguns meses.

No início, lutaram muito.

«Não volto à aula!»; «Não sou capaz!»; «Não posso...», repetiram uma e outra vez.

Entretanto, à força de insistirmos e de conversarmos com elas, um dia surpreenderam-nos. Bordaram porta-chaves tão bonitos e tão bem feitos que superaram todas as outras bordadeiras.

E daí começaram a florir. 

Os porta-chaves e os marcadores de livros começaram a ser feitos com mais pormenores e perfeição. E alegria. A sua autoestima cresceu e o seu orçamento também.

Estas jovenzitas, que nunca tinham recebido uma remuneração pelo seu trabalho, partilharam o dinheiro que agora recebem com a venda dos seus belos bordados.

Com alegria e orgulho, ofereceram parte dos seus lucros para as crianças – e nós próprias! – termos uma refeição digna e abundante.

Comemos até nos saciarmos a deliciosa makluba, um prato festivo feito de arroz e frango.

 As crianças são pequenas, como as flores que espreitam por entre as pedras e a areia.

Caminharam muito e continuam cheias de energia. Resistem, sorriem, brincam. 

Outra memória feliz que podem entesourar.

Oh, sim: Deus faz florir o deserto e de maneira admirável e belíssima.

Obrigado, meu Deus. Que admirável que és!

Cecília Sierra, missionária Comboniana

A Ir Cecília faz parte de uma equipa de três missionárias combonianas e algumas voluntárias que trabalham com os beduínos palestinianos no Deserto da Judeia, na Terra Santa.

4 de março de 2024

GUJIS: PASSAGEM DO PODER



 





O povo guji – mais de dois milhões de pessoas que vivem no sul da Etiópia e pertencem à grande etnia oromo – tem um sistema de governo muito democrático a que chama de Gada

A sociedade masculina está estratificada numa dúzia de graus correspondentes a faixas etárias de oito anos cada, agrupadas em quatro classes, representando as quatro fases da Lua. 

Cada homem guji nasce num determinado grau gada e a sua atribuição tem também a ver com a idade do pai: o filho tem de estar sempre quatro graus atrás do progenitor.

Cada oito anos os homens nascidos num determinado grau passam para o grau seguinte. Os gujis chamam marsá balli (transmissão ou passagem do poder) a este evento. 

Para a passagem do poder, o povo guji reúne-se numa grande assembleia chamada Gumi em Arda Jila – uma colina sagrada junto à cidade de Me’e Bokko, a meia dúzia de quilómetros da missão de Qillenso. 

Celebraram a sua cultura e elegem os abba Gada – literalmente os pais da ordem: os líderes dos três subgrupos gujis: Uraga (com quem vivi seis anos), Matti (onde me encontro) e Hokku (os gujis das terras baixas).

Este ano foi o ano da passagem do poder. Milhares de Gujis, homens e mulheres, reuniram-se em Arda Jila para proclamar os seus credos e a sua cultura, ratificar e atualizar as leis costumárias que regem a tribo (desde a fixação de dotes até às compensações por ferimentos ou morte) e para eleger os três Abba Gada e as respetivas equipas de assessores.

A grande assembleia começou a 14 de fevereiro e terminou uma semana depois. A pacata colina de Arda Jila – normalmente pasto de gado e refúgio de babuínos – e arredores, transformaram-se no epicentro do território guji.

Nos dias anteriores, palhotas provisórias foram erguidas para acolher os dignitários da tribo e para realizar algumas das cerimónias referentes à eleição. O espaço à volta de uma me’e, árvore sagrada para os gujis, foi limpo para acolher outros ritos.

Alguns comerciantes construíram barraquinhas para vender comida e bebidas à multidão que veio das três partidas gujis para celebrar a festa Gada, testemunhar a passagem de poder e mostrar que apesar dos ventos da modernidade, devido à escolarização e às redes sociais, a cultura guji continua viva e recomenda-se.

O ambiente durante a semana foi de festa. O branco era a cor dominante das vestes – decorado na maioria com barras azuis para eles e negras para elas. As mulheres traziam as suas cabaças de leite cobertas de missangas e decorações vistosas. Enquanto uma parte da multidão seguia os diversos ritos, sentada na erva seca da colina, outros passeavam a beleza e as vestes pela estrada de alcatrão que ladeia a colina sagrada.

Fui lá nos últimos dois dias para viver o clima de romaria que havia tomado conta da pacata colina e tirar algumas fotos. Vi a alegria e a vaidade de ser guji. E como era dos poucos estrangeiros presentes na assembleia, tive de aceitar fazer dezenas de selfies com quem me pedia, um verdadeiro momento Marcelo Rebelo de Sousa!

A escolha do Abba Gada dos Matti foi controversa. A eleição recaiu sobre um jovem que teve de ser casado à pressa na tarde anterior para poder receber o título e as insígnias de Abba Gada

As pessoas referiam-se-lhe como muchá, o moço. O dono do cavalo em que os Abba Gada eleitos se passeiam por entre a multidão, não lho queria emprestar. Houve alguma confusão, as tropas do estado regional da Oromia repuseram a calma, e o Abba Gada Matti pôde receber a sua (pequena) aclamação.

Abba Gada é o líder supremo de cada um dos três ramos gujis e leva como distintivo um falo de metal (kalacha) amarrado à testa – símbolo de fertilidade – e uma pena de avestruz. Tem poder para abençoar e amaldiçoar e para governar o seu subgrupo. A primazia entre os três Abba Gada cabe ao líder dos Uragas. 

Abba Gada não está sozinho no governo; é assistido por cinco conselheiros também eleitos e por um número de anciãos que já passaram pelo grau gada e são os depositários da memória guji.

Uma vez eleitos e aclamados, os três novos Abba Gada abençoaram a multidão e iniciaram uma peregrinação pelos locais sagrados das respetivas regiões. 

Daí a oito anos vão passar o poder ao escalão que os precede. 

Este ano realizou-se oficialmente a septuagésima quinta transição de poder. Assim sendo, o sistema gada dos gujis tem pelo menos 600 anos. Contudo, durante a conquista e integração do território guji na Etiópia, no século XIX, o imperador suspendeu por alguns anos a Jila Gada, a festa gada, e a passagem do poder.