3 de maio de 2006

Religião


A «IRRELEVÂNCIA» DE DEUS

A história do pecado original, narrada no livro bíblico do Génesis, apesar de ter alguns milhares de anos e de ser comum a culturas extrabíblicas de outras latitudes e tempos, é de uma actualidade espantosa. Em resumo, este texto pretende ilustrar que o pecado – de Adão, de Eva, de cada um de nós – é a opção fundamental pela autonomização em relação a Deus. A serpente insinuou que se comessem da árvore proibida «seriam como Deus».
Este processo de autonomização ou de emancipação de Deus tornou-se um dado cultural irreversível com o modernismo, através da adopção do paradigma científico e da secularização. Foi aprofundado pelos filósofos, nomeadamente pelo alemão Nietzsche, que proclamou a morte de Deus com o intuito de resgatar o Homem. O pós-modernismo foi mais além, e simplesmente empurrou Deus para fora da vida, tornando a questão religiosa irrelevante.
Os resultados práticos deste humanismo sem Deus são demolidores. Foi neste caldo filosófico-humanístico fechado que se cozinharam as maiores atrocidades contra a humanidade, através de guerras devastadoras e de regimes despóticos. É o que dá viver sem referências para além do próprio ego.
A descristianização acelerada da Europa tem as suas raízes neste agnosticismo prático e indiferente. O pensamento dominante ignora pura e simplesmente as raízes cristãs da cultura europeia, como se viu no projecto constitucional. Como resultado, a Europa está cada vez mais a-cristã. O que não quer dizer que seja a-religiosa.
É evidente que o genoma humano tem em si um marcador divino. A antropologia e a etnologia testemunham-no. Podemos chamar-lhe sede de Deus, de felicidade, de amor, de transcendente, de infinito, de auto-superação, um desejo, um vazio, uma angústia... Por isso, a indiferença em relação à prática cristã está a ser substituída por uma religiosidade à medida colhida no mercado de abastecimento do religioso. O consumismo é também uma maneira de satisfazer esta sede de algo mais que trazemos dentro de nós e que não sabemos – ou queremos – nomear.
Como pode a Igreja testemunhar e anunciar o Evangelho de Jesus nesta Europa indiferente à questão de Deus? O Papa Bento XVI escreveu na introdução da encíclica «Deus é Amor»: «No início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo.» Este é um ponto de partida importante para esta reflexão.
Para falar de Deus hoje, para dar corpo à nova evangelização preconizada por João Paulo II para devolver a Europa às suas raízes cristãs, a Igreja tem de se tornar cada vez mais um espaço de encontro com o Senhor Jesus vivo e ressuscitado na comunidade que se reúne em seu nome para anunciar a Boa-Nova através de uma práxis do amor. Um espaço de encontro que passa por um estilo de vida eclesial mais simples, humilde, místico-contemplativo e dialogante – na Igreja não há democracia, mas discernimento comunitário –; por liturgias mais inculturadas, com gestos e linguagens significativos e acessíveis às pessoas de hoje; por uma Igreja cada vez mais situada na periferia, para se dedicar às pessoas que vivem nas margens da globalização. É nelas que Jesus continua a sua paixão e é através delas que Ele também se encontra. A presença real do Jesus da vida vai para além das espécies eucarísticas. Jesus está presente realmente nos pobres, nos pequeninos, nos descartados pelo neoliberalismo, nos que não contam. É este é o roteiro que as Igrejas da Europa têm de seguir para tornarem Deus relevante no contexto sociocultural contemporâneo.

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