3 de janeiro de 2014

OBRIGADO, MADIBA


A morte de Mandela revelou que o líder sul-africano continua a ser inspiração e luzeiro num mundo que mais que nunca precisa de reconciliadores.

De Nelson Rolihlahla Mandela entesouro uma memória especial: acompanhei através da TV a sua saída da prisão a 11 de Fevereiro 1990 – em 1964 tinha sido condenado a prisão perpétua por sabotagem – e surpreendeu-me a magnanimidade com que caminhava para a liberdade e o resplendor de paz que irradiava, de quem estava de bem com a vida e com os seus carcereiros. Tinha passado 18 anos na prisão da ilha de Robben, desde 13 de Junho de 1964, literalmente a partir pedra, e os maus tratos provocaram-lhe uma doença pulmonar que acabou por o matar. Em 1982, Mandela foi transferido para a prisão de Pollsmoor e em 1988 para a Prisão de Victor Verster, de onde foi libertado.

Mandela, de fundador do braço armado do ANC, o Congresso Nacional Africano, evoluiu para reconciliador nacional. Aos 16 anos, durante a iniciação tradicional xhosa, recebeu o nome de Dalibhunga, «criador ou fundador da conciliação, do diálogo». Depois da sua libertação em 1990 até à eleição como primeiro presidente negro sul-africano em 1994, Mandela fez jus aos nome de adulto, segurou a maioria negra da vingança e evitou uma guerra civil sangrenta apesar das provocações dos supremacistas brancos que tentavam descarrilar as negociações entre o regime de Pretória e os dirigentes negros com assassínios mediáticos.

Quando Mandela faleceu a 5 de Dezembro de 2013, aos 96 anos, depois de doença prolongada, os tributos não se fizeram esperar. O Papa Francisco louvou «o compromisso permanente na promoção da dignidade humana para todos os cidadãos da nação e no forjar uma nova África do Sul construída nos alicerces firmes da não-violência, reconciliação e verdade».
Os bispos católicos da África do Sul, por seu turno, expressaram «a gratidão pelo sacrifício que fez por todas as pessoas da África do Sul e pela liderança e inspiração que ele deu em nos guiar no caminho da reconciliação».

Durante o memorial no Estádio FNB de Soweto, onde se destacava uma bandeira portuguesa entra a multidão que desafiava a chuva grossa – sinal de bênção na cultura sul-africana, Barack Obama disse que Mandela continua «a mostrar-nos que o impossível só é impossível até ser concretizado. Ele ensinou-nos que podemos escolher o mundo em que vivemos». O primeiro-ministro britânico, David Cameron, confessou-se tocado «pela sua graça e perdão». O presidente Jacob Zuma disse que «a África do Sul perdeu o seu maior filho». Um jovem anónimo foi mais longe: «Tata – pai em xhosa – é um segundo Jesus para nós.»

Mandela costumava dizer: «Eu sou o mestre do meu destino, o capitão da minha alma», citando um poema de William Ernest Henley. Ele explicou que ao conseguir ultrapassar o complexo de inferioridade dos negros da África do Sul, também ajudou os brancos a irem além do seu complexo de superioridade para todos formarem a nação arco-íris. «Eu aprendi que a coragem não era ausência de medo, mas o triunfo sobre isso. O homem valente não é quem não sente medo, mas o que conquista esse medo.»

Madiba passou a vida a juntar gentes. Em 2007, fundou o Grupo dos Anciãos, com um número de ex-chefes de Estado e líderes mundiais independentes para usarem a sua experiência na promoção da paz e dos direitos humanos. A morte deste reconciliador incansável juntou quase uma centena de estadistas. E levou o presidente Barack Obama a cumprimentar pela primeira vez o chefe cubano Raúl Castro em público e Winnie Mandela, a ex-esposa, a beijar Graça Machel, a viúva.

Mandela conseguiu a união política e a reconciliação da África do Sul pondo termo a um regime que segregava as pessoas de acordo com a percentagem de melanina presente nas suas peles. Na economia, contudo, dois terços dos jovens negros com menos de 35 anos continuam no desemprego e perdidos na violência urbana, enquanto os dirigentes políticos usam e abusam dos bens públicos para fins privados. A libertação económica da maioria negra é ainda uma miragem.

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