10 de outubro de 2017

CORAGEM PARA O FUTURO


Hoje faz 136 anos que faleceu São Daniel Comboni; uma morte com três dezes: às dez da noite de dez de outubro – o mês número dez – de 1881, em Cartum, a capital do Sudão.

Sinto vontade de revisitar o texto do P. João Dichtl, o jovem missionário austríaco que custodiou os últimos momentos de Comboni num relicário, memorial sagrado feito de palavras e sentimentos numa carta ao Cónego João Mitterrutzner de Bressanone um dia depois da morte do nosso Pai e Fundador. É bom ler a história através dos olhos dos seus atores.

Recordemos a narrativa comovida e comovedora que nos envolve e devolve à missão: «Grande Deus! O telégrafo falou. Ontem pelas dez (não sei sequer a hora exata) o grande bispo Comboni, abençoando a sua missão, passou à outra vida. Morreu nos meus braços; sugeri-lhe aos ouvidos os últimos suspiros de amor. Enxuguei-lhe as últimas lágrimas! Oh quanto estou agradecido a Deus por ter-me concedido, missionário inexperiente, ainda sem fazer 24 anos, esta grande graça. Das 10h30 de domingo (9 de outubro) não o deixei um momento. Queria-me junto a si, não podia estar sem mim, e sujeitou-se-me como uma criança. Como agradeço o Senhor e quanto me sinto feliz de ter podido oferecer estes últimos serviços ao meu amadíssimo Pai, aquele que me introduziu no santuário, e de ter gozado a sua confidência última e plena! Ontem de tarde quis que prometesse uma vez mais a fidelidade à missão. Fi-lo. Jurei querer morrer no vicariato. “Ou Nigrícia ou morte!”, dizia-me Comboni. Não se preocupe comigo. Se eu tivesse que seguir imediatamente o meu bispo, fiat! Mas sinto um vigor extraordinário e forças como nunca. Graças sejam dadas a Deus. Pobre missão! Pobres negros! Se os tivesse visto! Mas chega. Receba hoje o último beijo, a última saudação, o último obrigado do seu amigo bispo.»

O P. Dichtl não era nenhum missionário-noviço. Comboni tinha uma grande estima por ele, conseguiu uma dispensa do Vaticano para ser ordenado antes do tempo. E escreveu: «P. João Dichtl e P. José Ohrwalder são uns missionários de primeira ordem, com grande espírito de sacrifício e verdadeiramente santos» (Escritos 6666).

O P. Dichtl era o pároco interino de Cartum à altura da morte do fundador. Escreveu no registo dos óbitos que as febres perniciosas foram a causa da morte do bispo de Cartum.

Quem apanhou a malária sabe por experiência própria do grande desconforto e mal-estar que febre alta, os suores, as tremuras e espasmos causam.

Daniel Comboni não se preocupa com o seu bem-estar. Está agónico, às portas da morte, mas o que o preocupa é a fidelidade dos seus à missão.

Fez jurar a Dichtl um juramento mínimo, o juramento maior expresso em quatro simples palavras: «Ou Nigrícia ou morte!»

A missão era a sua preocupação: «À [missão] consagrei toda a minha alma, o meu corpo, o meu sangue e a minha vida!» (Escritos 5256). Até ao fim derradeiro, até ao último suspiro de amor.

Os Annali della Associazione del Buon Pastore publicaram no fascículo n.º 27 de janeiro de 1882 a primeira biografia de Comboni, um texto não assinado de 45 páginas intitulado Mons. Daniele Comboni, Vic. Ap. Dell’Africa Centrela e le sue opere.

Na introdução, o texto é apresentado como «simples exposição das épocas e das coisas principais que se referem e ele e à missão».

O memorial da vida e obra de São Daniel Comboni regista as palavras-testamento do fundador: «ele próprio recomendo-lhes coragem para o presente acrescentando, muito comovido, “e sobretudo para o futuro”.»

Coragem para o presente, porque os missionários não paravam de morrer… E o seu próprio fim estava por um fio.

E uma comovida coragem sobretudo para o futuro! Será que Comboni já lia no horizonte carregado a grande tormenta mahdista que destruiu todo o seu labor apostólico? Ou deseja essa coragem comovida a nós, os seus filhos e herdeiros, 150 anos depois do Instituto das Missões para a Nigrícia ter sido fundado?

A mesma coragem que a Madre Geral Maria Bollezzoli recomenda às missionárias de Comboni numa carta expedida de Verona com a data de 18 de outubro de 1881: «Filhas caríssimas, coragem! Sede fortes e generosas, não vos deixeis abater; [...] caminhai seguras sobre as pegadas deixadas pelo vosso magnânimo pai.»

Coragem vem do vocábulo latino coraticum que junta a palavra cor (coração) ao sufixo aticum (que indica acção). Etimologicamente quer dizer agir ou fazer com o coração, ser cordial. É também um termo bem comboniano: aparece 113 vezes nos Escritos de S. Daniel Comboni.

A razão diz-nos que vivemos numa sociedade pós-cristã, que os jovens já não se interessam pela nossa (estranha) forma de vida, que a animação missionária é cada vez mais difícil de fazer, que estamos a envelhecer, que estamos a morrer.

Somos tentados a descalçar as sandálias da missão, pôr as pantufas da consagração e esperar tranquilos a irmã morte no sofá da desesperança. E que o último apague a luz e bata a porta antes de partir.

No dizer desconcertador de Blaise Pascal «o coração tem razões que a razão desconhece».

O coração hoje diz-nos para permanecer dedicados à missão de Deus, da qual participamos, onde quer que estejamos, até ao fim. Porque se aqui envelhecemos e diminuímos, na África rejuvenescemos e crescemos. O eurocentrismo prega-nos partidas e tolda-nos o discernimento…

O coração hoje diz-nos que estamos sempre na idade da missão para testemunhar a alegria de sermos discípulos missionários no Portugal de hoje como cenáculo de apóstolos de formas legíveis para as novas gerações.

Viver os nossos dias com a coragem que Comboni nos deseja e dá é meter o coração em tudo o que fazemos; e colocar no Coração trespassado do Bom Pastor tudo o que somos e fazemos através da intercessão do fundador que incessantemente nos desafia: «Ou missão ou morte!»

Fazemo-lo com o coração e em comunhão com os nossos antepassados no Instituto! Pelos quais louvamos o Senhor num momento de silêncio – como no-lo pede o padre geral.

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